quarta-feira, 18 de novembro de 2009

A Maratona

Afinal, não passamos a maior parte da vida duvidando de nós mesmos, pensando que não somos bons o suficiente, não somos fortes o suficiente, não fazemos o certo? A maratona proporciona a oportunidade de encarar essas dúvidas. Ela tem uma forma de analisar o contexto da nossa própria essência, eliminando todas as barreiras protetoras e expondo nossa alma. A maratona diz que o prejudicará, que você ficará desmoralizado e derrotado como um amontoado inerte ao lado da estrada. Ela diz que não pode ser feita – não por você. Ah!, ela zomba de você. Somente nos seus sonhos!

Então, você treina pesado; dedica-se de todo o coração; sacrifica-se e supera os inúmeros pequenos desafios ao longo do caminho. Deposita tudo que conseguiu nela. Mas sabe que a maratona exigirá muito mais de você. Nas profundezas escuras da mente uma voz pessimista está dizendo: Você não consegue. Você se esforça ao máximo para ignorar essa insegurança, mas a voz não o abandona.

Na manhã da primeira maratona, a voz da dúvida se multiplica, tornando-se um coro completo. Na altura do quilômetro 30, esse coro está gritando tão alto que é só o que você consegue escutar. Os músculos doloridos e esgotados imploram que você pare. Você deve parar. Mas você não para. Dessa vez ignora a voz da dúvida; ignora aquele que diz que você não é bom o suficiente, e só ouve a paixão no seu coração. Esse desejo ardente diz para continuar, para colocar um pé audaciosamente à frente do outro, e em algum lugar você encontra a força de vontade para fazê-lo.

A coragem surge de diversas formas. Hoje você descobre a coragem para continuar tentando, para não desistir, por mais terríveis que as coisas se tornem. E elas se tornarão terríveis. No marco do quilômetro 40, você quase não conseguirá ver mais o percurso – a visão se torna vaga e vacilante ao mesmo tempo que a mente oscila nos limites da consciência.

E então, repentinamente, a linha de chegada floresce à sua frente, como um sonho. Um nó se forma na garganta durante o percurso daqueles poucos passos finais. Agora, você finalmente consegue responder à irritante voz com um inequívoco Sim, eu posso!

Sua explosão ao cruzar a linha de chegada, cheio de orgulho, para sempre livre da prisão da insegurança e das limitações autoimpostas que o mantiveram prisioneiro. Você aprendeu mais sobre si mesmo nos últimos 42 quilômetros do que em qualquer outro dia de sua vida. Mesmo que não consiga andar mais tarde, você nunca foi tão livre. Completar uma maratona é mais do que apenas algo que se ganha; um maratonista é alguém em quem você se transforma.

* trecho do livro de Dean Karnazes

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

The Survivors

Este é o nome da categoria destinada aos ultramaratonistas que assim como eu, no dia 17/10/09, encararam os 75 quilômetros da 2ª etapa do Revezamento Bertioga-Maresias 2009, na modalidade solo, um desafio de fogo.

Os SURVIVORS vencedores desta etapa foram Vanderlei Santos Pereira (05:30:06) e nossa amiga Maria Claudia Ferreira Souto (07:52:10). O difícil percurso ligando as duas praias em meio a muita chuva, areia pesada, trilhas lamacentas, asfalto, rios, pontes, subidas e descidas íngremes compuseram o cenário deste desafio considerado uma verdadeira corrida de aventuras.

- A PREPARAÇÃO

Meu maior temor era não saber se conseguiria completar a prova vez que jamais havia corrido uma distância tão longa anteriormente. Foram alguns meses de árdua preparação, com uma planilha recheada de quilômetros a fazer, sendo que muitos deles não cumpridos por conta de outras prioridades e uma semana de enfermidades que aumentou minha insegurança e ansiedade antes da prova. Porém, os principais treinos longões tinham sido feitos e como diziam os atletas mais experientes, a prova seria muito mais mental do que física. O interessante foi que o sentido desta frase pôde ser compreendido plenamente só ao final da prova quando pipocaram flashes de todas as dificuldades superadas quilômetro a quilômetro.

- A LARGADA

O regulamento da prova estabelecia que na categoria solo, cada atleta deveria ser acompanhado por um apoio de bike ou carro ao longo do percurso, porém resolvi encarar a prova sozinho. Minha logística já estava traçada e não incluía qualquer ajuda externa, nem da própria organização do evento que de antemão já anunciava que a hidratação fornecida seria precária e insuficiente.

Assim, minha camelbak (mochila de hidratação) disporia de todo o apoio que eu necessitasse: 2 litros de isotônico congelado, frutas secas, amêndoas, barras de cereais, géis de carboidrato, sanduíches, dinheiro para coca-coca e água de coco, além dos itens essenciais para corredores como vaselina, micropore e protetor solar.

Cerca de 100 SURVIVORS largaram às 07:15hs da Praia da Enseada em Bertioga rumo à Maresias. Daí pra frente o caminho seria árduo e bastante longo.

- UM PC DE CADA VEZ

Durante semanas procurei entender bastante sobre cada detalhe da corrida. Trocava e-mails quase que diariamente com o Ironman e Ultra amigo Régis Correa que já participara de edições anteriores dessa competição. Dizia ele que a prova seria dificílima mas que confiava que nós dois de uma forma ou de outra a concluiríamos com êxito.

No trajeto em direção ao 1º PC, adotamos um ritmo bastante confortável freando a empolgação inicial e procurando correr no limite da maré, evitando fazer distâncias a mais desnecessariamente. O clima nublado/chuvoso nos favoreceu muito pois apesar da lama e areia pesada, era melhor que um sol brilhando sobre as nossas cabeças.

Vencido o 1º PC em Indaiá nos primeiros 10 quilômetros, partimos para o PC2 em Riviera de São Lourenço. Nesse momento o Régis avisou que iria parar rapidamente para o primeiro reabastecimento com o seu biker-apoio, o Júnior. Pensei em aproveitar o momento para fazer xixi evitando assim perder a companhia do Régis na corrida. Todavia, não encontrei um local discreto e continuei indo em frente num passo mais lento. Ao olhar para trás na imensidão da praia não houve sinais de aproximação do Régis e, assim, resolvi continuar imprimindo um ritmo mais forte pois naquela hora eu estava me sentindo muito bem.

- ESTRATÉGIAS

Minha corrida agora seria solitária e vez ou outra estava sendo ultrapassado por atletas de equipes de revezamento que largaram 15 minutos depois dos SURVIVORS.

Lembrava-me das minhas conversas com o Régis, principalmente das nossas estratégias como o de ignorar o percurso total de 75 km e concentrar esforços numa corrida de 45 km. Seria uma distância conhecida e perfeitamente possível de cumprir. De fato, a essa altura já teríamos cumprido mais da metade da prova e os 30 quilômetros restantes soariam mais tranqüilizadores.

Por volta do trigésimo quilômetro, resolvi fazer minha primeira parada para reabastecimento. Sentei-me numa pedra, retirei da camelbak um sanduíche, algumas frutas secas e amêndoas, tudo regado a isotônico gelado, a única bebida disponível naquela ocasião. Dez minutos parados e nada do Régis aparecer. Renovado, segui o meu trajeto.

Nesse momento passava uma atleta SURVIVOR de Curitiba, a Joseli Simões, que assim como eu estava num ritmo médio e cadenciado. Passamos a correr bons quilômetros juntos tentando nos incentivar, o que também se revelou uma ótima estratégia. Sem dúvida, aos poucos a prova se revelava altamente psicológica e ainda iria exigir muito de nossas mentes.

- FÍSICO E MENTE

De tempos em tempos, o Júnior, biker-apoio do Régis, nos ultrapassava acenando e eu aproveitava para perguntar em que situação se encontrava o Régis. Por três oportunidades ele dissera que o Régis encontrava-se acerca de 15 minutos atrás de mim.

Se no início a minha estratégia era correr com o Régis, a Jôsi estava sendo uma boa companhia também. Contudo, naquela altura nem eu nem ela tínhamos mais noção das distâncias até então percorridas. Em mais uma passagem do Júnior que se adiantava para aguardar o Régis no PC seguinte, indagamos sobre a quilometragem percorrida e ele nos felicitou dizendo que já tínhamos superado a distância da maratona e que estávamos chegando quase no 45º quilômetro!

Olhamos para os nossos relógios e pulamos de alegria com o fabuloso tempo, tendo em vista circunstancias tão adversas. Ora, em meu psicológico eu já tinha superado a metade do percurso, assim restando apenas pouco mais de 30 km a cumprir!

Tudo parecia estar indo bem e minhas expectativas tinham sido superadas, pelo menos até encontramos o Júnior novamente que nos informou do engano e que na verdade estávamos ainda no 38º quilômetro!

Foi um tremendo balde de água fria em nossas cabeças pois o desgaste estava grande e o fato de estarmos praticamente ainda na metade da prova foi extremamente desanimador. Meu psicológico foi abaixo e minhas pernas começaram a pesar. Não estava mais conseguindo manter o mesmo ritmo e assim falei para a Jôsi seguir em frente, pois pensava em diminuir até achar um local para o meu segundo pit-stop.

Logo, encontrei um bar em meio a um vilarejo e pedi uma coca-cola. O cansaço abrupto talvez tivesse relação com a queda de pressão, assim, também pedi um punhado de sal. Aguardei mais alguns minutos na esperança de ver o Régis passar, mas nada dele.

Revitalizado pelo sal e pela coca-cola gelada, continuei a minha jornada, porém, acompanhado de um mal estar intestinal. De fato, ao longo da corrida eu havia ingerido géis, barras de cereais, sanduíches, frutas secas, isotônico, coca-cola e aquela mistura toda combinada com a longa distância estava cobrando uma solução.

Não havia como parar. Os bares tinham ficado para trás e a estrada de terra não era nem um pouco convidativa para uma parada. Resolvi continuar firme e as cólicas foram esquecidas quando olhei para trás e vi o Régis se aproximando com o Júnior. Aleluia!

- APOIO MÚTUO

Voltamos a correr juntos e nessa altura já havíamos ultrapassado a barreira dos 50 quilômetros. Agora podíamos caminhar um pouco sem nenhum pudor. Fizemos isso em algumas subidas íngremes para poupar energia para a grande Serra de Maresias que nos aguardava ao final.

Nessa altura, o Júnior já havia encerrado seu apoio ao Régis que estava combinado para até o 50º quilômetro, porém foi justamente na parte final que o apoio mais fez falta. Afinal, correr maratonas é muito diferente de correr ultras a começar pelos efeitos colaterais do percurso. Nas maratonas, uma mão de vaselina nos mamilos e uma bermuda térmica são suficientes para evitar as temidas assaduras. Numa ultra, a estória é bem diferente pois depois de 5 a 6 horas correndo, a vaselina vence e se faz necessário renovar sua aplicação. Nas maratonas, as bolhas nos pés são suportáveis por 3 a 4 horas correndo, mas suportá-las por mais de 8 ou 9 horas é mais do que uma tortura.

Sem o apoio do Júnior, o Régis agora sofria com bolhas e assaduras. Nessa hora entrei em ação com o meu apoio pois eu vinha preparado com vaselina e micropore na minha camelbak. Paramos e eu fiz um curativo na grande bolha entre os dedos do pé do Régis e prosseguimos por mais quilômetros.

Num dado momento, foi a minha vez de dar conta que eu estava correndo travado e sofrendo em silêncio por conta das cólicas intestinais. Não queria mais fazer paradas, mas o Régis me aconselhou a parar no primeiro estabelecimento pois a coisa poderia piorar. Resolvi acatar e valeu a pena, pois minutos depois já estava aliviado. Cerca de 200 metros a frente estava o Régis me aguardando! Essa parceria estava sendo fundamental! Daqui pra frente, tudo seria na base da pura raça!

- PASSINHOS DE BEBÊ

O último PC já ficara para trás fazia um bom tempo. No relógio cerca de 08 horas de prova e pouco mais de 65 quilômetros percorridos! Fisicamente, tanto eu como o Régis estávamos bem embora o cansaço fosse grande, as coxas queimassem, os quadris doessem, os ombros contraíssem e as panturrilhas ameaçassem com câimbras. A vontade era parar a qualquer custo! Todavia, faltava para a chegada o equivalente a uma prova dominical de 10 quilômetros. Desistir estava completamente fora de cogitação!

Há um capítulo do livro “50 Maratonas em 50 Dias” do ultramaratonista Dean Karnazes intitulado “Passinhos de Bebê” que serviu bem aos nossos propósitos na corrida. Karnazes descreve que “Por mais que se prepare, é provável que você depare com momentos em que duvidará da sua capacidade de vencer, ou talvez de dar outro passo. (...) Não pense nos quilômetros que faltam. Viva o momento; ponha um pé a frente do outro. Dê passinhos de bebê”.
Assim como descrito no livro, fracionamos a distância e fomos cumprindo mini-metas: “Vamos correr até aquela placa amarela”; “Pronto, agora até aquela árvore alta”; “Conseguimos! Agora até aquele caminhão estacionado”; “Vamos lá, passinhos de bebê!”. E de etapa em etapa fomos vencendo os quilômetros.

- A TEMIDA SERRA DE MARESIAS

Era chegada a hora de encarar a pirambeira estrategicamente colocada com requintes de crueldade no final do percurso da prova.

Nessa ocasião já não era mais possível correr, mas ainda assim necessitávamos redobrar a concentração para não parar. Com seus 2 metros e 3 cm de altura, o Régis tomou a dianteira e abriu caminho e distância com suas largas passadas. Para encurtar a distância que crescia entre nós, vez ou outra eu ensaiava um pequeno trote, mas estava muito difícil chegar.

Muitos carros de apoio do pessoal do revezamento passavam buzinando e nos incentivando o que foi bastante gratificante e motivador. Sem dúvida nenhuma eu havia compreendido que aquela prova era muito mais mental do que física como disseram.

A altimetria da Serra de Maresias era assustadora. Se para mim, a subida foi lenta e desgastante, na descida soltei meu corpo ignorando todas as dores. Agora só me restava descer e correr até a chegada!

Minha vontade era chegar e quando ultrapassei o Régis, gritamos palavrões de desabafo e incentivo que ecoaram na estrada íngreme. O Régis poupava seus joelhos pelo grande impacto do seu peso e tamanho e dali eu distanciei.

Ao final da descida, uma garota da organização sinalizava o caminho de entrada para o quilômetro final na Praia de Maresias. Não pensei duas vezes: - Páro aqui para esperar meu amigo e cruzamos juntos a linha de chegada!

- O QUILÔMETRO FINAL

Alguns minutos mais e o Régis já aparecia no pé da Serra, feliz da vida. Quando chegou me deu um grande abraço emocionante e seguimos juntos para os 1000 metros finais de areia fofa.

E foram 1000 metros de muita alegria e reflexão. Ao todo 75 quilômetros percorridos e muitos obstáculos. O Régis dizia que pouca gente no mundo tinha condições de fazer o que tínhamos acabado de fazer. Não porque as pessoas não tivessem capacidade física, mas porque talvez faltasse para a maioria coragem para dar o primeiro passo; para vencer suas limitações; seus medos. O que fizemos foi história, lição de vida, um feito que iríamos contar aos nossos filhos com muito orgulho, um feito que ninguém poderia mais tirar de nós.

Cruzamos juntos a linha de chegada depois de 9h e 42 minutos de muita aventura, esforço, emoção e aprendizado.

segunda-feira, 5 de outubro de 2009

Reconectando

Não sente aí, está sujo, empoeirado.
Vou dar um jeito aqui, não repara.
Sente-se aqui, enquanto vou lá na cozinha lavar umas xícaras.
Leia isto, pegue.
O que achou?
Sim, é sobre corridas.
Você corre, não corre?
Por que eu sumi em setembro?
Então, leia aí, a chaleira está fervendo, já volto.
Quer açúcar né... tem orgânico aqui.
Doente? Estressado? Como assim?
Pegue uns biscoitos, tó.
Vai lendo aí... foi tudo em setembro, ó.

http://www.ectavares.com.br/noticia.php?id=338
http://www.ectavares.com.br/noticia.php?id=342

Desconectado

Desapontado.
Descentralizado.
Desconcentrado.
Desinformado.
Desmemorizado.
Desqualificado.
Desequilibrado.
Desregulado.
Desvirtuado
Desenganado.
Descompassado.
Desvalorizado.
Desativado.

sábado, 22 de agosto de 2009

A hora certa de pensar

Não entendi o sentido daquele telefonema. Um grande problema à vista? Mais um para eu me preocupar? Não quero pensar nisso agora.

Preciso correr. Faz tempo que não corro.

Começo pela Rua do lado.

Gosto dela, aqui o movimento é intenso, os carros buzinam, as pessoas estão em busca de algo, sempre indo para algum lugar. Ninguém olha pra você, pensativas como eu, preocupadas, estão bem distantes. Ela é igual a todas as outras, até por isso, gosto dela. Amanhã não sei, mas hoje gosto dela.

Avisto a Praça.

Dói de olhar. Algumas belezas são desperdiçadas. Como a mulher que dorme ao chão protegida pelo banco. Não duvido que um dia ela tenha sido bonita. Assim como a Praça. Hoje nem a Praça nem a mulher são mais bonitas. Dói de olhar.

Ali está o Parque.

Darei uma volta. Só uma. Não quero contato.
Tenho respeito por ele. Está sempre lá. Nunca sai do lugar e sempre consigo entrar. Dias tristes, dias felizes, dias intensos, dias românticos, dias de ira. Ele me respeita. Por isso volto sempre pra vê-lo. Mas hoje, não quero contato com ninguém. Só com o parque pois ele me conhece e sabe que só vou dar uma volta. E não preciso falar nada, não preciso ser educado. Corro e saio.

O Cemitério.

Esse cemitério não tem portas. Ou melhor, tem, mas fica do outro lado do quarteirão e pra lá eu não gosto de correr. Ele pode ser silencioso, mas transborda angústias. O cemitério é maduro, porém intempestivo. Não quero entrar nele. Pelo menos não agora.

A Ladeira.

Tenho um prazer mórbido em subi-la. Sempre me provoca e sempre sai frustrada. Parece que não aprende. Sabe aquela pessoa que insiste em te convencer sobre algo impossível? Pois é, vc faz de propósito e já nem liga se ela vai achar ruim ou não. Subo com prazer!

Em Casa.

É bom chegar. Um banho, uma roupa nova, um alimento, um afago, um sofá, uma música, um suspiro, um pensamento.

Pego o telefone. Já posso pensar.

terça-feira, 18 de agosto de 2009

Redemoinhos

E quando você tenta...

Atender mas é desprezado?
Acudir mas é empurrado?
Argumentar mas é rechaçado?
Esperar mas é ignorado?
Fugir mas é tragado?

Nietzsche responderia por mim:

"Onde quer que você esteja, cave profundamente,
Lá embaixo fica a fonte.
Deixe os homens sombrios gritar:
Lá embaixo fica sempre o inferno."


quinta-feira, 9 de julho de 2009

O menino nada bobo

Recordo-me que aos meus 9 anos de idade resolvi produzir um gibi e ficar rico.

Para tal empreitada, peguei algumas folhas de sulfite em branco e corteia-as ao meio imitando o formato dos gibis da Turna da Mônica (até então minha maior referência). Usei cola branca para transformar o punhado de papeis num mini caderno com capa e contra-capa. Assim comecei a desenhar nele aquilo que poderia ter sido a revolução do mundo das HQ´s.

Até hoje lembro-me do título: "O menino bobo". Era a saga do garoto que vivia levando bronca dos pais por fazer coisas erradas. Obviamente, os desenhos tinham traços infantis e não havia os recursos modernos que dispomos atualmente. Lápis de cor, giz de cera, canetas hidrográficas coloridas e minha criatividade estampariam vinte páginas de sulfite branco.

Os quadrinhos eram feitos sem a preocupação com a diagramação ou demais regras técnicas. Era pura expressão artística despejada diretamente no papel. Por vezes, os balõezinhos de diálogos eram incapazes de abrigar quantidade de letras que expressavam os eloquentes diálogos entre os personagens: "Fez a lição de casa?" "Não papai" "Ora, então você é bobo e feio!" "Buááááá!"

Foi um trabalho compenetrado e extenuante apenas interrompido pela mamãe para o lanche da tarde recheado de bolinhos de chuva que deixaram suas marcas de gordura em todas as páginas da obra.

Finalizado o gibi, encarreguei-me de levá-lo à escola onde anunciei: "Estou vendendo um gibi e custa o valor de um bauru na cantina!" A mãe do Fabinho, sempre dava uma boa grana pra ele gastar com o que quisesse na hora do recreio, portanto, foi ele o meu primeiro leitor.

Enquanto eu embolsava o troco e saboreava um misto-quente, mais barato que o bauru (que tinha uma fatia de tomate a mais), o Fabinho me perguntava: "O que tá escrito aqui? Sua letra é muito feia!" Ao que eu respondia: "Deixa eu ver, xi também não entendo ela, melhor perguntar pro Andrezinho pois a estorinha é sobre ele."

De fato, a estória era sobre o André Ramos que regularmente levava estrondosas broncas dos pais na frente de todos. Na minha ótica de criança o via como um menino ruim que desobedecia aos pais e professores e por isso era duramente repreendido. Não sei que fim deu o Andrezinho, como ele cresceu, se conseguiu superar seus traumas, seus complexos, seus medos e paradigmas. Porém, hoje eu sei que tudo que via naquele comportamento rebelde era reflexo de sua conturbada criação.

Nesta semana, fui convidado a escrever algo sobre a importância da atitude dos pais na formação da personalidade de uma criança. Um desafio complicado pois é algo totalmente novo que terei de transformar em um livro. Algo tão megalomaníaco como aquele pretensioso gibi que por capricho do destino, ficou apenas na memória do Fabinho, que não curtiu a estória e não me deixou rico.