quarta-feira, 4 de novembro de 2009

The Survivors

Este é o nome da categoria destinada aos ultramaratonistas que assim como eu, no dia 17/10/09, encararam os 75 quilômetros da 2ª etapa do Revezamento Bertioga-Maresias 2009, na modalidade solo, um desafio de fogo.

Os SURVIVORS vencedores desta etapa foram Vanderlei Santos Pereira (05:30:06) e nossa amiga Maria Claudia Ferreira Souto (07:52:10). O difícil percurso ligando as duas praias em meio a muita chuva, areia pesada, trilhas lamacentas, asfalto, rios, pontes, subidas e descidas íngremes compuseram o cenário deste desafio considerado uma verdadeira corrida de aventuras.

- A PREPARAÇÃO

Meu maior temor era não saber se conseguiria completar a prova vez que jamais havia corrido uma distância tão longa anteriormente. Foram alguns meses de árdua preparação, com uma planilha recheada de quilômetros a fazer, sendo que muitos deles não cumpridos por conta de outras prioridades e uma semana de enfermidades que aumentou minha insegurança e ansiedade antes da prova. Porém, os principais treinos longões tinham sido feitos e como diziam os atletas mais experientes, a prova seria muito mais mental do que física. O interessante foi que o sentido desta frase pôde ser compreendido plenamente só ao final da prova quando pipocaram flashes de todas as dificuldades superadas quilômetro a quilômetro.

- A LARGADA

O regulamento da prova estabelecia que na categoria solo, cada atleta deveria ser acompanhado por um apoio de bike ou carro ao longo do percurso, porém resolvi encarar a prova sozinho. Minha logística já estava traçada e não incluía qualquer ajuda externa, nem da própria organização do evento que de antemão já anunciava que a hidratação fornecida seria precária e insuficiente.

Assim, minha camelbak (mochila de hidratação) disporia de todo o apoio que eu necessitasse: 2 litros de isotônico congelado, frutas secas, amêndoas, barras de cereais, géis de carboidrato, sanduíches, dinheiro para coca-coca e água de coco, além dos itens essenciais para corredores como vaselina, micropore e protetor solar.

Cerca de 100 SURVIVORS largaram às 07:15hs da Praia da Enseada em Bertioga rumo à Maresias. Daí pra frente o caminho seria árduo e bastante longo.

- UM PC DE CADA VEZ

Durante semanas procurei entender bastante sobre cada detalhe da corrida. Trocava e-mails quase que diariamente com o Ironman e Ultra amigo Régis Correa que já participara de edições anteriores dessa competição. Dizia ele que a prova seria dificílima mas que confiava que nós dois de uma forma ou de outra a concluiríamos com êxito.

No trajeto em direção ao 1º PC, adotamos um ritmo bastante confortável freando a empolgação inicial e procurando correr no limite da maré, evitando fazer distâncias a mais desnecessariamente. O clima nublado/chuvoso nos favoreceu muito pois apesar da lama e areia pesada, era melhor que um sol brilhando sobre as nossas cabeças.

Vencido o 1º PC em Indaiá nos primeiros 10 quilômetros, partimos para o PC2 em Riviera de São Lourenço. Nesse momento o Régis avisou que iria parar rapidamente para o primeiro reabastecimento com o seu biker-apoio, o Júnior. Pensei em aproveitar o momento para fazer xixi evitando assim perder a companhia do Régis na corrida. Todavia, não encontrei um local discreto e continuei indo em frente num passo mais lento. Ao olhar para trás na imensidão da praia não houve sinais de aproximação do Régis e, assim, resolvi continuar imprimindo um ritmo mais forte pois naquela hora eu estava me sentindo muito bem.

- ESTRATÉGIAS

Minha corrida agora seria solitária e vez ou outra estava sendo ultrapassado por atletas de equipes de revezamento que largaram 15 minutos depois dos SURVIVORS.

Lembrava-me das minhas conversas com o Régis, principalmente das nossas estratégias como o de ignorar o percurso total de 75 km e concentrar esforços numa corrida de 45 km. Seria uma distância conhecida e perfeitamente possível de cumprir. De fato, a essa altura já teríamos cumprido mais da metade da prova e os 30 quilômetros restantes soariam mais tranqüilizadores.

Por volta do trigésimo quilômetro, resolvi fazer minha primeira parada para reabastecimento. Sentei-me numa pedra, retirei da camelbak um sanduíche, algumas frutas secas e amêndoas, tudo regado a isotônico gelado, a única bebida disponível naquela ocasião. Dez minutos parados e nada do Régis aparecer. Renovado, segui o meu trajeto.

Nesse momento passava uma atleta SURVIVOR de Curitiba, a Joseli Simões, que assim como eu estava num ritmo médio e cadenciado. Passamos a correr bons quilômetros juntos tentando nos incentivar, o que também se revelou uma ótima estratégia. Sem dúvida, aos poucos a prova se revelava altamente psicológica e ainda iria exigir muito de nossas mentes.

- FÍSICO E MENTE

De tempos em tempos, o Júnior, biker-apoio do Régis, nos ultrapassava acenando e eu aproveitava para perguntar em que situação se encontrava o Régis. Por três oportunidades ele dissera que o Régis encontrava-se acerca de 15 minutos atrás de mim.

Se no início a minha estratégia era correr com o Régis, a Jôsi estava sendo uma boa companhia também. Contudo, naquela altura nem eu nem ela tínhamos mais noção das distâncias até então percorridas. Em mais uma passagem do Júnior que se adiantava para aguardar o Régis no PC seguinte, indagamos sobre a quilometragem percorrida e ele nos felicitou dizendo que já tínhamos superado a distância da maratona e que estávamos chegando quase no 45º quilômetro!

Olhamos para os nossos relógios e pulamos de alegria com o fabuloso tempo, tendo em vista circunstancias tão adversas. Ora, em meu psicológico eu já tinha superado a metade do percurso, assim restando apenas pouco mais de 30 km a cumprir!

Tudo parecia estar indo bem e minhas expectativas tinham sido superadas, pelo menos até encontramos o Júnior novamente que nos informou do engano e que na verdade estávamos ainda no 38º quilômetro!

Foi um tremendo balde de água fria em nossas cabeças pois o desgaste estava grande e o fato de estarmos praticamente ainda na metade da prova foi extremamente desanimador. Meu psicológico foi abaixo e minhas pernas começaram a pesar. Não estava mais conseguindo manter o mesmo ritmo e assim falei para a Jôsi seguir em frente, pois pensava em diminuir até achar um local para o meu segundo pit-stop.

Logo, encontrei um bar em meio a um vilarejo e pedi uma coca-cola. O cansaço abrupto talvez tivesse relação com a queda de pressão, assim, também pedi um punhado de sal. Aguardei mais alguns minutos na esperança de ver o Régis passar, mas nada dele.

Revitalizado pelo sal e pela coca-cola gelada, continuei a minha jornada, porém, acompanhado de um mal estar intestinal. De fato, ao longo da corrida eu havia ingerido géis, barras de cereais, sanduíches, frutas secas, isotônico, coca-cola e aquela mistura toda combinada com a longa distância estava cobrando uma solução.

Não havia como parar. Os bares tinham ficado para trás e a estrada de terra não era nem um pouco convidativa para uma parada. Resolvi continuar firme e as cólicas foram esquecidas quando olhei para trás e vi o Régis se aproximando com o Júnior. Aleluia!

- APOIO MÚTUO

Voltamos a correr juntos e nessa altura já havíamos ultrapassado a barreira dos 50 quilômetros. Agora podíamos caminhar um pouco sem nenhum pudor. Fizemos isso em algumas subidas íngremes para poupar energia para a grande Serra de Maresias que nos aguardava ao final.

Nessa altura, o Júnior já havia encerrado seu apoio ao Régis que estava combinado para até o 50º quilômetro, porém foi justamente na parte final que o apoio mais fez falta. Afinal, correr maratonas é muito diferente de correr ultras a começar pelos efeitos colaterais do percurso. Nas maratonas, uma mão de vaselina nos mamilos e uma bermuda térmica são suficientes para evitar as temidas assaduras. Numa ultra, a estória é bem diferente pois depois de 5 a 6 horas correndo, a vaselina vence e se faz necessário renovar sua aplicação. Nas maratonas, as bolhas nos pés são suportáveis por 3 a 4 horas correndo, mas suportá-las por mais de 8 ou 9 horas é mais do que uma tortura.

Sem o apoio do Júnior, o Régis agora sofria com bolhas e assaduras. Nessa hora entrei em ação com o meu apoio pois eu vinha preparado com vaselina e micropore na minha camelbak. Paramos e eu fiz um curativo na grande bolha entre os dedos do pé do Régis e prosseguimos por mais quilômetros.

Num dado momento, foi a minha vez de dar conta que eu estava correndo travado e sofrendo em silêncio por conta das cólicas intestinais. Não queria mais fazer paradas, mas o Régis me aconselhou a parar no primeiro estabelecimento pois a coisa poderia piorar. Resolvi acatar e valeu a pena, pois minutos depois já estava aliviado. Cerca de 200 metros a frente estava o Régis me aguardando! Essa parceria estava sendo fundamental! Daqui pra frente, tudo seria na base da pura raça!

- PASSINHOS DE BEBÊ

O último PC já ficara para trás fazia um bom tempo. No relógio cerca de 08 horas de prova e pouco mais de 65 quilômetros percorridos! Fisicamente, tanto eu como o Régis estávamos bem embora o cansaço fosse grande, as coxas queimassem, os quadris doessem, os ombros contraíssem e as panturrilhas ameaçassem com câimbras. A vontade era parar a qualquer custo! Todavia, faltava para a chegada o equivalente a uma prova dominical de 10 quilômetros. Desistir estava completamente fora de cogitação!

Há um capítulo do livro “50 Maratonas em 50 Dias” do ultramaratonista Dean Karnazes intitulado “Passinhos de Bebê” que serviu bem aos nossos propósitos na corrida. Karnazes descreve que “Por mais que se prepare, é provável que você depare com momentos em que duvidará da sua capacidade de vencer, ou talvez de dar outro passo. (...) Não pense nos quilômetros que faltam. Viva o momento; ponha um pé a frente do outro. Dê passinhos de bebê”.
Assim como descrito no livro, fracionamos a distância e fomos cumprindo mini-metas: “Vamos correr até aquela placa amarela”; “Pronto, agora até aquela árvore alta”; “Conseguimos! Agora até aquele caminhão estacionado”; “Vamos lá, passinhos de bebê!”. E de etapa em etapa fomos vencendo os quilômetros.

- A TEMIDA SERRA DE MARESIAS

Era chegada a hora de encarar a pirambeira estrategicamente colocada com requintes de crueldade no final do percurso da prova.

Nessa ocasião já não era mais possível correr, mas ainda assim necessitávamos redobrar a concentração para não parar. Com seus 2 metros e 3 cm de altura, o Régis tomou a dianteira e abriu caminho e distância com suas largas passadas. Para encurtar a distância que crescia entre nós, vez ou outra eu ensaiava um pequeno trote, mas estava muito difícil chegar.

Muitos carros de apoio do pessoal do revezamento passavam buzinando e nos incentivando o que foi bastante gratificante e motivador. Sem dúvida nenhuma eu havia compreendido que aquela prova era muito mais mental do que física como disseram.

A altimetria da Serra de Maresias era assustadora. Se para mim, a subida foi lenta e desgastante, na descida soltei meu corpo ignorando todas as dores. Agora só me restava descer e correr até a chegada!

Minha vontade era chegar e quando ultrapassei o Régis, gritamos palavrões de desabafo e incentivo que ecoaram na estrada íngreme. O Régis poupava seus joelhos pelo grande impacto do seu peso e tamanho e dali eu distanciei.

Ao final da descida, uma garota da organização sinalizava o caminho de entrada para o quilômetro final na Praia de Maresias. Não pensei duas vezes: - Páro aqui para esperar meu amigo e cruzamos juntos a linha de chegada!

- O QUILÔMETRO FINAL

Alguns minutos mais e o Régis já aparecia no pé da Serra, feliz da vida. Quando chegou me deu um grande abraço emocionante e seguimos juntos para os 1000 metros finais de areia fofa.

E foram 1000 metros de muita alegria e reflexão. Ao todo 75 quilômetros percorridos e muitos obstáculos. O Régis dizia que pouca gente no mundo tinha condições de fazer o que tínhamos acabado de fazer. Não porque as pessoas não tivessem capacidade física, mas porque talvez faltasse para a maioria coragem para dar o primeiro passo; para vencer suas limitações; seus medos. O que fizemos foi história, lição de vida, um feito que iríamos contar aos nossos filhos com muito orgulho, um feito que ninguém poderia mais tirar de nós.

Cruzamos juntos a linha de chegada depois de 9h e 42 minutos de muita aventura, esforço, emoção e aprendizado.

3 comentários:

  1. Paulo, estou emocionada! Li todo o texto e a história passou tão rápido que queria mais. Esses dias li uma frase que dizia que não importa se o livro é grande, importa se a história é boa. Estou muito feliz por vc e orgulhosa de ter um amigo que foi capaz de vencer tantos kms de desafios. É isso ai, a gente é que escreve a nossa história e vc está escrevendo a sua direitinho!

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  2. Paulo,li sua jornada do dia 17/10.Você não foi com o objetivo de ganhar, mas sim de acreditar que poderia chegar lá, as vezez se sentiu sózinho,ou apenas mais um na multidão, mas sempre acreditando que você era capaz,obstaculos apareceram, você enfrentou, amigos apareceram para para dar força, o caminho foi longo e a cada PC uma conquista até a reta final.
    Paulo você foi um vencedor em acreditar em você e no seu potencial.
    Agradeço muito por ter um amigo como você.
    "PARABENS E QUE DEUS TE ABENÇÕE SEMPRE"

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  3. Olá Paulo,
    Sou seu Xará e li seu artigo no site do Tavares.
    Parabéns pela FAÇANHA!
    Apesar de viajar de vez em quando com o grupo do Tavares, não estou podendo atualmente participar da ECTavares.
    Mas o que me chamou a atenção foi o seu relato desta prova. Não sabia das dificuldades.
    Estou treinando aqui no Plameiras (SEPalmeiras) com o grupo de corridas, e dois dos meus colegas fizeram também o solo: o Roberto e o Eliseu (mas não sei seus sobrenomes) mas eles tiveram apoio da esposa de um deles - acho que de carro.
    Parabéns mais uma vez, e vc me animou a treinar para essa prova no ano que vem.
    Abraços Ultramaratonistas...
    Paulinho Ribeiro Felisoni

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